Pesquisar este blog

terça-feira, 13 de julho de 2010

Carta a um Jovem Promotor de Justiça - Paulo Queiroz

27 de junho de 2008
Carta a um Jovem Promotor de Justiça

Caro Promotor: em resposta às indagações que me fizeste, segue o que penso a respeito.

Bem sabes que, dentre as relevantes funções que agora exerces, está a de acusar, tarefa das mais graves e difíceis, por certo. Pois bem, quando acusares – e tu o farás muitas vezes, pois o teu dever o exige – não esqueças nunca que sob o rótulo de “acusado”, “réu”, “criminoso” etc. há sempre um homem, nem pior nem melhor do que ti; lembra que nosso crime em relação aos criminosos consiste em tratá-los como patifes (Nietzsche). Evita incorrer nessa censura!

Acusa, pois, dignamente, justamente, humanamente!

Lembra que, entre os teus deveres, não está o de acusar implacavelmente, excessivamente, irresponsavelmente. Se seguires a Constituição, como é teu dever, e não simplesmente a tua vontade, atenta bem que a tua função maior reside na defesa da ordem jurídica e do regime democrático (CF, art. 127), e não da desordem jurídica, nem da tirania. E defendê-la significa, entre outras coisas, fazer a defesa intransigente dos direitos e garantias do acusado, inclusive; advogá-lo é guardar a própria Constituição, é defender a liberdade e o direito de todos, culpados e inocentes, criminosos e não criminosos.

Por isso, sempre que te convenceres da inocência do réu, não vacila em pugnar por sua pronta absolvição, ainda que tudo conspire contra isso; faz o mesmo sempre que a prova dos autos ensejar fundada dúvida sobre a culpa do acusado, pois, como sabes, é preferível absolver um culpado a condenar um inocente.

Ousa, portanto, defender as garantias do réu, ainda que te acusem de mau-acusador, ainda que isso te custe a ascensão na carreira ou a amizade de teus pares. Assim, sempre que o teu dever o reclamar, não hesita em impetrar habeas corpus, em recorrer em favor do condenado, em endossar as razões do réu, e jamais te aproveita da eventual deficiência técnica do teu (suposto) oponente: luta, antes, pela Justiça! Lembra, enfim, que és Promotor de Justiça, e não de injustiça!

E quando te persuadires da correção do caminho a trilhar, segue sempre a tua verdade, a tua consciência, não cede à pressão da imprensa, nem de estranhos, nem de teus pares; sê fiel a ti mesmo, pois quem é fiel a si mesmo não trai a ninguém (Shakespeare), porque não cria falsas expectativas nem ilusões.

Trata a todos com respeito, com urbanidade; sê altivo com os poderosos e compreensivo com os humildes; lembra que quem se faz subserviente e se arrasta como verme não pode reclamar de ser pisoteado (Kant).

Evita o espetáculo, pois não és artista de circo nem parte de uma peça teatral; sê sereno, sê discreto, sê prudente, pois não te é dado entregares a tais veleidades;

Estuda, e estuda permanentemente, pois não te é lícito o acomodamento; não esqueças que toda discussão tecnológica encobre uma discussão ideológica; lê, pois, e aplica as leis criticamente; não olvidas que teu compromisso fundamental é com o Direito e a Justiça e não só com a Lei;

Não te julgues melhor do que os advogados, servidores, policiais, juízes e partes, nem melhor do que teus pares;

Não colocas a tua carreira acima de teus deveres éticos nem constitucionais;

Vigia a ti mesmo, continuamente, mesmo porque onde houver uso de poder haverá sempre a possibilidade do abuso, para mais ou para menos; antes de denunciar o argueiro que se oculta sob olhos dos outros, atenta bem para a trave que te impede de te ver a ti mesmo e a teus erros; lembra que as convicções são talvez inimigas mais perigosas da verdade que as mentiras, e que a dependência patológica da sua óptica faz do convicto um fanático (Nietzsche);

Não te esqueças de que, por mais relevantes que sejam as tuas funções, és servidor público, nem mais, nem menos, por isso sê diligente, sê probo, sê forte, sê justo!

Por Paulo Queiroz, Procurador Regional da República – 1ª Região / Professor universitário (UniCEUB), Autor, entre outros, do livro Direito Penal, Parte Geral, Ed. Saraiva.

Fonte: Boletim dos Procuradores da República n.º 80 (maio de 2008)

3 comentários:

  1. Em aspas: Acusa, pois, dignamente, justamente, humanamente!

    Lembrando-se de alguns fatos que não são irrelevantes e que não merecem ser esquecidos, como é o caso dos "miseráveis que os senhores mal olham quando cruzam com eles na rua, a quem não dirigem a palvra, cujo convívio empoeirado evitam instintivamente; um desses miseráveis, cuja infância maltrapilha correu descalça por ruas lamacentas, tremelicando no inverno à beira dos cais, aquecendo-se no respiradouro das cozinhas de M. Véfour - em cujas mesas os senhores costumam jantar -, descobrindo aqui e lá um pedaço de pão num monte de lixo e esfregando-o antes de comer, vasculhando todos os dias o córrego para tentar encontrar uma moeda, não tendo outra diversão além do espetáculo gratuito da festa do rei e as execuções na Grève, esse outro espetáculo grátis; pobres diabos que a fome leva ao furto, e o furto ao resto; crianças deserdadas de uma sociedade madrasta, que a casa de detenção pega aos doze anos, as galés aos dezoito e o cadafalso aos quarenta; desafortunados que com uma escola e uma oficina os senhores poderiam ter tornado bons, morais, úteis, e com os quais não sabem agora o que fazer, despejando-os, como um fardo inútil, ora no rubro formigueiro de Toulon, ora entre as mudas muralhas de Clamart, subtraindo-lhes a vida depois de lhe ter roubado a liberdade" (Victor Hugo)

    ResponderExcluir
  2. Mas o principal é não deixar de ser probo e honesto no desempenho de suas funções. Assim agindo, de acordo com o correto e o justo, jamais será cometida a injustiça.

    ResponderExcluir