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quinta-feira, 4 de março de 2010

A PRISÃO SOB O PRISMA DO TEMPO: UM RETROCESSO AO FUTURO

(...) teniendo en cuenta la mayor velocidad con la que hoy discurre el tiempo externo y la elevada concentración de elementos que lo atraviesan y dinamizan, el tiempo de la cárcel parece proporcionalmente mucho más lento y, por consiguiente, más largo que hace algún tiempo. Giuseppe Mosconi

1. Considerações Introdutórias

Ainda que possa, a primeira vista, parecer estranho falar em tempo quando tratamos da violência, essas duas palavras se entrecruzam especialmente quando a violência chega ao conhecimento do judiciário, ou seja, quando alguém, que cometeu um determinado fato considerado pela “sociedade” como delituoso, é levado ao banco dos réus.

Nesse momento em que o acusado é citado para responder por um processo criminal seu tempo lhe é retirado das mãos e colocado a mercê do tempo processual, o qual na visão de quem foi vítima se mostra longo e de desesperança, pois seu desejo de vingança parece nunca chegar. Por outro lado, para o réu sua esperança está no tempo, pois a demora é uma forma de se deixar a luz entrar no processo para que se clareiem as dúvidas, para que as garantias sejam respeitas - já que o acusado durante o processo se mostra como lado mais fraco da relação jurídica -, bem como só o tempo poderá lhe trazer a absolvição através da prescrição, trazendo consigo, nas palavras de François Ost, o direito ao esquecimento.

Mas, sobrevindo condenação a pena privativa de liberdade, um novo tempo se instaura, o da execução, onde o processo judicializado perde sua força para um ato administrativo, no qual o Estado, através do aparato carcerário, não retira do condenado só a sua liberdade, honra, cidadania, mas também seu tempo, pois ao tempo do fato ficará ligado durante a sua pena, se não para sempre. Eis aí a primeira crise a ser analisada.

Como podemos perceber e como bem ensinam Paul Virilio e Derrick De Kerkchove, perante essa nova sociedade o motor propulsor já não é mais o espaço mas o tempo, enquanto que a prisão teria como uma de suas funções, se é que tem alguma, retirar o condenado de seu espaço e do espaço social para colocá-lo em um micro espaço de controle. Como se pode perceber a pena privativa de liberdade ainda está fortemente arraigada em uma sociedade que tem o espaço como variável preponderante.

Ocorre que não só a liberdade e, portanto, seu espaço é tirado do condenado, mas o seu direito a interagir com a sociedade livre, com a tecnologia, com o presente, ou seja, o tempo, essa sim variável de uma sociedade da info-tecnologia.

Hoje o tempo se mostra a variável que tem perturbado várias áreas do conhecimento tal como a física, a biologia, a química, pois verifica que o tempo linear e reversível já não se mostra possível requerendo dos pesquisadores buscar soluções para esses novos fenômenos. Com o conhecimento complexo esse mesmo fator, tempo, vem atingir as ciências sociais, a psicologia, a medicina e por conseguinte o direito e em especial o penal, motivo esse que nos faz analisar a pena de prisão sob o viés do tempo.

Assim, para uma análise do cárcere em uma sociedade contemporânea não podemos deixar de analisar o tempo e sua relação para com o indivíduo e a organização social.

Nesse paper, não só aspectos legais serão analisados, mas pelo contrário, tentaremos fazer um recorte do tempo na psicologia, na psiquiatria, na biologia, na física, na filosofia, na sociologia para fazer uma interface com a pena privativa de liberdade no atual sistema penal. Cabe alertar que não se pretende defender uma teoria abolicionista como faz Elena Larrauri, mas somente mostrar alguns efeitos que a pena de prisão pode trazer, bem como mostrar pontos que devem ser repensados enquanto o cárcere se mostrar um mal necessário para uma realidade como da América Latina.

2. Falando de tempo

Com a física do século XX, uma nova visão temos do mundo. O espaço-tempo que fazia parte da imagem de nosso universo perdeu seu poder para a luz-velocidade. Não é mais possível sabermos a velocidade e ao mesmo tempo a posição de uma partícula, o princípio da incerteza invadiu o mundo das exatas. A matemática euclidiana já não mais soluciona os problemas da física e da astronomia, bem como a estatística, com suas probabilidades também não mais dá conta de um universo em expansão. Hoje há possibilidades dentro do caos.

Assim, algo deveria ser feito, porém o tempo estava no centro do problema. Eis a primeira questão: poderia o tempo preceder a matéria ou aquele surgiu com essa?

O que parecia ser um problema somente para os matemáticos, físicos e astrônomos (chamadas ciências exatas) mostrou-se um problema para as ciências sociais, tanto que vários autores começaram a tratar do tempo, pois esse alterava o comportamento do homem. A cibernética, a realidade virtual, a comunicação à longa distância, a interatividade e a conectividade aceleraram o mundo em que vivemos. Não temos mais como retroceder a velocidade do homem dos 80’s ou 90’s, pois somos jogados para a frente por uma fonte emissora que não conhecemos, mas que percebemos.

Destarte, parar o tempo, isto é, parar o presente, visto que nem passado nem futuro encontram mais sustentação nas novas teorias do universo, deixa o homem sobre o qual a luz se acende, em uma inércia.

Mas algo pior ainda se mostra, ou seja, teria o Estado, o grande Leviatã, direito de retirar de quem o constitui o seu presente? Poderia existir uma forma de criar uma nova flecha do tempo na contramão da do universo, da sociedade livre?

Tais perguntas nos fazem analisar a prisão sobre uma nova perspectiva que não mais se dá em relação ao direito somente, mas também em relação ao próprio universo, no qual todos nós estamos inseridos e do qual a luz faz emergir o tempo.

3. Uma breve história do tempo em relação ao homem.

O homem, nos seu primórdios, não tinha que se preocupar com o tempo, ou seja, com a velocidade com que esse se acelerava. Durante um longo período, o tempo era marcado simplesmente pelo dia e pela noite (relógio solar). Porém, com a evolução das sociedades, novos instrumentos faziam-se necessários para marcar o tempo e não somente isto: o tempo em períodos cada vez mais curtos, chegando, atualmente, a requerer marcadores de tempo em frações de nano segundo.

Como bem lembra François Ost, os instrumentos para marcar o tempo revelam uma profunda dependência para com as necessidades sociais e com as configurações do momento.

Temos hoje a pressa como companheira inseparável, porém face o conhecimento da relatividade seria essa pressa, essa aceleração do tempo, algo relativo, visto que quanto mais aceleramos mais rapidamente o tempo parece se mover?

Segundo uma visão econômica podemos dizer que o tempo das sociedades pré-industriais era cíclico, marcado pelas estações e que se sucedia em gerações. As sociedades industriais mudaram do tempo cíclico para um tempo linear e finalista, ou seja, um tempo destinado a acumulação, a mercantilização; trata-se de um tempo quantificado.

O tempo das sociedades pós industriais, ainda seguindo a lição de Giuseppe Mosconi, é um tempo complexo e ambíguo. Se por um lado se espera um tempo medido, estruturado, previsível, programável, racional e tecnicamente controlável, por outro se mostra, força a aceleração que nos encontramos e que sofre a gerencia dos novos meios de comunicação, um tempo composto, cheio de variáveis, oportunidades e de possibilidades e experiências, além de ser o tempo do consumo. Essa duplicidade de caráter pode ser uma das conseqüências do stress e da opressão imposta pelo ritmo acelerado.

Com a invasão das novas tecnologias, a troca de informações deixa de se realizar em função do tempo para se efetuar na instantaneidade, na interatividade, na união entre o sujeito e o objeto. A dualidade, que durante séculos acompanhou a humanidade, perde seu lugar na relatividade: o tempo agora passa a se configurar no entretempo, bem como o espaço no entrelugar.

Sob essa visão, a sociedade se acelera, pois como bem lembra Derrick Kerckhove, os sentidos de hoje já não são os mesmos do homem de anos atrás, o olho humano do filho vê um horizonte além do de seu pai, o tato do homem conectado (via Internet) consegue tocar o outro lado do planeta, demonstrando o quanto os seus sentidos se alargaram. Temos a plasticidade do corpo.

Portanto, ao homem inserido, digo inserido, pois acredito que mesmo estando livres não estamos todos inseridos no século XXI, o planeta tornou-se pequeno, ou melhor, tão pequeno que podemos tocar o ponto mais distante de nós com um simples esticar do braço até o “mouse”, onde o estar significa não somente o real, mas também o virtual, já que ambos confundem-se no novo conceito de tempo e lugar, enquanto que para o excluído – aquele que se encontra em uma prisão – o seu planeta se tornou a sua prisão descolada deste outro mundo exterior. Um mundo exterior que promete ter controle sobre um mundo deslocado tanto no espaço quanto no tempo.

Seguindo o pensamento de François Ost, é forçoso constatar que existam diferentes tempos sociais, ou seja, o tempo do trabalho e o tempo do não-trabalho, do incluído e do excluído, sendo o primeiro o tempo daquele que se torna indisponível para o mundo, enquanto que o segundo o tempo do não inserido neste mesmo mundo.

Para comprovar tal fato, seguindo ainda o pensamento do autor supra, “basta comparar o tempo estagnado de centenas de milhões de seres humanos que vivem abaixo do limiar de pobreza com o tempo das trocas comercias entre países industrializados e, sobretudo o tempo das trocas financeiras que operam em tempo real na bula especulativa das bolsas de valores, em operações vinte quatro horas por dia.”

Para o inserido no espaço social da prisão, o seu tempo, desde a sua retirada do mundo da sociedade, sofre uma retenção, ou quem sabe, um retrocesso, como bem lembra o professor Aury Lopes Jr., o tempo do preso se mostra um tempo de involução, de improdução, sem criação, o tempo da inércia, para utilizar-se o termo empregado por Paul Virilio.

Enquanto que no mundo dos incluídos – e aqui cabe salientar incluídos e não desviantes – a vida (espaço e tempo) se passa em um “click”, pois sequer necessitamos nos mover para darmos a volta ao mundo, o tempo dos “outros” pára no primeiro “clack” do fechamento do cadeado que trancafia o homem em um outro mundo, o mundo onde o tempo se conta ao inverso – a prisão.

É sob mais esse prisma que temos que verificar a prisão, meio ainda defendido como um mal necessário.

4. Duração

Para uma grande parte da população, segundo a mídia, e alguns aplicadores do direito, a pena se encontra defasada, ou seja, os limites da pena estão muito aquém do que se gostaria – chegando-se a pena de morte - pois quem assim se manifesta está convicto de que a pena ainda é a melhor resposta a ser dada ao desviante, tanto como retribuição como em ressocialização ou, ainda, prevenção.

Esquecem ou querem esquecer que aquele que uma vez tenha sido excluído do “open world” jamais voltará a ser aceito nesse sem trazer consigo não só estigma e etiquetamento de ex-detendo, como estará profundamente fora da sincronia temporal e tecnológica com que a sociedade, dita livre, interage, pois como sabemos a prisão não só etiqueta, despersonaliza e dessocializa o preso, mas também todos que o rodeiam, destruindo o seu grupo social.

Louk Hulsman muito bem trata do tema quando alerta que:

“Perdendo a liberdade, aquele que vivia de salário e tinha um emprego, imediatamente perde este emprego. Ao mesmo tempo, perde a possibilidade de manter sua casa e assumir os encargos de família. Se vê separado desta família, com todos os problemas morais que isso acarreta: sua esposa ou companheira às voltas com forças hostis (vizinhos mal-intencionados talvez, ou um patrão a exigir que ela se demita...), seus filhos daí para frente marcados pelo estigma – ‘seu pai esteve na prisão’. Bruscamente cortado do mundo, experimenta um total distanciamento de tudo que conheceu e amou. (...) as regras de vida na prisão fazem prevalecer relações de passividade-agressividade e de dependência-dominação, que praticamente não deixam qualquer espaço para a iniciativa e o diálogo; são regras que alimentam o desprezo pela pessoa e que são infantilizantes. O fato de que, durante o enclausuramento, as pulsões sexuais só possam se exprimir sob a forma de sucedâneos fantasiosos – masturbação ou homossexualidade – aumenta o isolamento interior. O clima de opressão onipresente desvaloriza a autoestima, faz desaprender a comunicação autêntica com o outro, impede a construção de atitudes e comportamentos socialmente aceitáveis para quando chegar o dia da libertação. Na prisão, os homens são despersonalizados e dessocializados”.

Para outra parte da população e operadores do direito a pena aplicada ao homem de hoje não pode manter relação com a pena aplicada ao homem do início do século XX, pois aquele homem metaboliza sua interação de forma muito mais veloz. Assim, sua pena deveria ser, segundo Vittorio Foa, de no máximo cinco anos. Já Ferrajoli aceita uma pena de no máximo dez anos. Enquanto Vittorio Foa em 1949 entendia ser 5 anos um limite máximo para a pena privativa de liberdade, pode Ferrajoli em 1995 conceber um período de dez anos, mesmo estando num mundo que o tempo se acelera em progressão geométrica?

5. O tempo e o cárcere

Ao se analisar o cárcere, sua estrutura e suas funções na sociedade contemporânea, não se pode deixar de perceber que a info-tecnologia acelerou a vida dos que a ela tem acesso e por ricochete os que vivem a margem dela. Essa alteração se mostrou de forma mais explícita na economia – trabalho e produção.

A prisão em relação aos novos tempos se mostra uma deformação da própria sociedade que a produz, pois tanto o tempo social como o tempo inconsciente de quem é encarcerado extrema-se em sentido oposto do da sociedade incluída.

Destarte, cabe discorrer, ainda que de modo superficial, força o trabalho proposto, sobre as tensões e disfunções entre o tempo da sociedade livre e incluída e o reflexo desse tempo em relação ao tempo dos encarcerados, seguindo a trilha percorrida por Giuseppe Mosconi.

5.1. Espaço e Tempo

A sociedade info-tecnológica se mostra cada vez mais acelerada e onde a relação distancia espacial e tempo se mostra cada vez mais reduzida, nos remetendo a uma inércia provocada pela simultaneidade. Em contrapartida a relação espaço e tempo no cárcere é vista como um reflexo invertido, pois o sujeito encarcerado tem o seu espaço fixado em um mesmo local, seu cárcere, e nesse local seu tempo se mostra hiperinflacionado, força a repetitividade da vida dentro da prisão. Assim, enquanto que para o sujeito livre não há um espaço definido, pois esse se mostra instável face a interatividade e a conectatividade gerada pela informática, para o encarcerado o espaço é rígido e ritualizador dos comportamentos e escolhas.

5.2. Horário: tempo cronológico

Enquanto que na sociedade livre os horários rígidos regem as atividades essenciais e programadas em detrimento das atividades optativas, ainda assim, esse indivíduo livre tem a capacidade de um controle da partição de seu horário. Já, no cárcere o sujeito tem seu horário estipulado de cima para baixo de forma rígida, fazendo com que ao encarcerado só lhe reste aceitar de forma passiva, transformando-o em um alienado pela instituição carcerária.

5.3. Trabalho

Para o indivíduo livre o horário do trabalho se apresenta como o um horário fixo enquanto que o tempo livre – não trabalho – se mostra um horário flexível, de crescimento, de reflexão em que há uma valoração do tempo. Então, o que a primeira vista poderia ser um tempo de improdução, na realidade é um tempo de crescimento das relações sociais e de crescimento interior.

Na prisão o trabalho oferecido ao preso se mostra obsoleto ou marginal em relação à sociedade livre, com uma função puramente correcional, transformando a (im)produção em uma forma de controle social.

5.4. Ideologia e pragmatismo

Se na sociedade livre as ideologias orientam as motivações e as ações de um modo pragmático, ainda assim deixa espaço livre para a experimentação e a invenção, na prisão por força dos significados hiperideológicos, punitivos e corretivos seus limites são fixos. Assim, o apenado se encontra entre significados fixos contrastantes, pois deve manter –se entre uma ideologia que o julga, uma prática de sobrevivência e exigências de autolegitimação.

5.5 Cotidiano e seguridade

No cárcere pode-se notar que o cotidiano tem características opressivas, com função de implementar a passividade, transformando-se em um elemento de insegurança do presente e uma incerteza quanto ao futuro, levando o encarcerado a sua autodestruição.

5.6. Previsto e imprevisto

Na sociedade livre o tempo previsto oferece ao indivíduo uma base para que busque, através de sua iniciativa individual, o imprevisto, ou seja, o incontrolável, enquanto que na prisão a rigidez do previsto gera uma situação de imprevisibilidade do próprio hoje.

5.7. Passado, presente e futuro

O presente, no mundo exterior ao cárcere, é o tempo em que o homem contemporâneo se liga, ou seja, esse está ligado a um tempo sem memória, pois a aceleração não nos permite nos apegar ao passado, e sem projeto, pois o futuro é incerto, portanto, vive-se o presenteismo. Na prisão o presente em que é mantido o apenado é um presente deformado, pois é um presente do passado, ou seja, é o passado deslocado ao presente, enquanto que o futuro só seria possível com a liberdade. Tal percepção, por parte do apenado gera uma perspectiva falsa, pois esse não consegue ver que está fora do tempo da sociedade livre.

5.8. Abundante e escasso, cheio e vazio

Na sociedade informática o tempo necessário para a complementação de um grande número de atividades se abreviou para a instantaneidade, o que geraria um tempo livre abundante, porém a complexidade social e a aceleração nos fez ter cada vez mais incumbências e, portanto, tornou esse tempo escasso.

Visualizando o tempo do cárcere, esse se mostra um tempo abundante devido a passividade imposta, porém, força a expropriação do autocontrole por parte da administração penitenciária, faz com que tanto a abundância e a escassez se confundam em uma única dimensão estática e totalizadora.

Enquanto que na sociedade livre o indivíduo, face a aceleração, faz com que se busque cada vez mais compromissos criando um ciclo vicioso, aumentando a sensação de opressão e engessamento, no cárcere não existe a relação cheio/vazio pois esta está submissa a uma dimensão opressora, criada por um ambiente rígido e que tolhe qualquer forma de estímulo e iniciativa, transformando o indivíduo em alguém impotente.

5.9. Medida heterodireta e desmedida auto-organizada

Se por um lado o tempo da sociedade livre é heteroprogramado pela rotina produtiva e social ao mesmo tempo é incerto quanto à sua duração, por outro no cárcere o tempo é hipermedido, tanto pela pena quanto nos horários impostos pela administração. Porém, também no cárcere o tempo é incerto, força a subjetividade para a concessão de benefícios, limitando qualquer iniciativa do apenado.

6. Prisão: retirar a liberdade de ir e vir, porém interagir (progredir, evoluir)?

Não nos cabe aqui analisar profundamente todos os modelos que visam dar uma função à pena, uma vez que a matéria se encontra bem formulada pelo professor Salo de Carvalho. Porém nos cabe alertar que o progresso também nos trouxe uma maior consciência da humanização dessa em relação ao homem.

A pena também foi sofrendo mutações, ou melhor, evoluções, pois não era mais possível tolerar que o desviante, aquele que entrasse em confronto com a norma de conduta estipulada pela “sociedade”, pudesse sofrer constrangimentos além dos mínimos necessários.

Hoje a própria Constituição brasileira em seu art. 5º, incisos XLV e XLVII, declara uma maior humanização nas penas determinando que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, bem como não será permitido pena de morte, de caráter perpétuo, trabalhos forçados, banimento e cruel.

A pena privativa de liberdade, entendida aqui como a liberdade de locomoção – segundo nosso entender ir e vir – não abrangeria a privação de uma interação com o mundo e com a tecnologia, pois a sua manutenção em uma inércia temporal demonstra-se claramente uma pena cruel para com aquele que em nenhum momento deixou de ser um ser humano, ainda que tenha que pagar a pena por ter cometido um fato concebido como crime e não por ser um criminoso.

Esse imobilismo se mostra perigoso, pois a falta de uma imaginação de novas formas de se fazer cumprir as penas privativas de liberdade – plano repressivo, tão revelador do ethos de um modelo jurídico – faz com que a sanção seja paga com um mal que pode chegar a ser superior ao mal cometido, sem que apareça uma saída para uma reação em cadeia, uma vez que o reprimido em seu tempo, quando retornar ao tempo social, será lançado para frente sem uma base, portanto, não terá como se firmar, não surgindo alternativa para aquele que tenha sido excluído. “Aquele que foi pego pelo sistema é culpado para o resto da vida. É essa a nossa justiça – um mecanismo de exclusão definitiva?”

A extirpação do direito de ir e vir, que ocorre quando alguém é condenado por uma pena privativa de liberdade, não dá ao Estado o direito de retirar desse a sua essência humana e, portanto, o direito de se manter ativo em seu tempo. Ocorre que, atualmente, a pena imposta ao condenado além de lhe retirar o status de cidadão, uma vez que não é somente a liberdade que lhe é tolhida, mas também seus direitos políticos e civis, transforma-o em um apátrida, ou mais, “res”.

O lugar de fala de quem tenha entrado para o sistema da regressão temporal, se é que algum dia tenha tido lugar de fala, enquanto estiver dentro do sistema se manterá suspenso e quando voltar ao “open world” terá seu lugar no tempo em que lhe foi tirado, portanto, em algum lugar do passado. A capacidade de trazer seu lugar de fala para o presente torna-se algo quase que inexeqüível, pois como percebemos até hoje, o negro, já passado mais de 100 anos, não conseguiu dominar seu lugar de fala, muito menos trazê-lo ao mesmo tempo presente.

Como tentamos demonstrar a pena privativa de liberdade, com essa suspensão do tempo social, faz com que a memória do crime se prolongue. Punir é, pois, antes de mais nada, recordar por um longo período da vida do condenado o crime, senão para sempre, visto que não só na memória do condenado ele se fixará, mas também na da sociedade. Quando essa receber aquele homem que fora mantido em um tempo aparte do tempo social, terá que recebê-lo a partir do fato no qual foi condenado, ou seja, no momento do fato, pois naquele momento o tempo foi congelado. Assim, é a partir de tal ponto que terá que recuperar seu lugar de fala.

7. O direito penal e sua função. Parar o relógio do tempo!

Ainda que se queira dar outra roupagem ao direito penal esse ainda mantém seu caráter retributivo, vingativo e taliônico, porém agora tendo em um dos pólos o Estado.

Para François Ost, ainda que possa discordar, a pena se apresenta com três funções básicas, cada qual em uma fase temporal, sendo: “uma função preventiva virada para o futuro, uma função de reparação centrada no presente e uma função de retribuição, estribada no passado” (talião).

Quanto à terceira função da pena é que temos que nos preocupar, pois é na retribuição de um fato passado que retroagimos até o momento do fato e lá congelamos a vida do acusado durante o processo e, depois, do condenado na execução. Como bem explora François Ost, se é verdade que retribuir seria pagar de volta, a função retributiva pressupõe uma justiça calcada em um mal passado (a infração), a qual se tenta fazer com que um mal lhe seja equivalente (a pena). Assim, trata-se de um “trabalho de anamnese”, onde o mal ocorrido no passado deverá ser transportado até o presente para saber qual o castigo merecido, ou seja, qual a pena “justa”, merecida e proporcional.

Como se verifica, pelo direito penal calcado no passado é que a rememoração do crime fecha em um ciclo que tende a aumentar a violência. Por um lado, por fazer com que o crime seja rememorado e, por outro, porque retira do condenado o seu tempo social, a sua evolução. Neste ponto, quando se faz com que o crime seja rememorado tanto para o acusado quanto para a vítima é que o ciclo da vingança e da violência não acha uma saída, motivo pelo qual achamos que a vítima não deva ser trazida, novamente, ao processo penal, pois essa de forma alguma conseguirá manter o distanciamento necessário para se livrar e julgar um fato passado.

Trata-se, como bem exemplifica François Ost, de uma forma em que “tudo se passa então como se os relógios tivessem parado na hora da ofensa e o futuro não apresentasse outra perspectiva que não fosse a ruminação neurótica do crime e a esperança da sua anulação simbólica. Na resolução vingadoura, o tempo imobiliza-se no espaço fechado do momento passado da ofensa cujo presente e futuro apenas permitem a repetição obsessiva”.

O processo penal, instrumentalizando o direito penal, tem fundamental importância para por um fim à vingança privada, porém a pena por ele aplicada nada mais é do que fazer rememorar o crime, enquanto que o processo penal acusatório público consegue manter um distanciamento da emoção.

Porém, seria essa pena determinada pelo Estado necessária? Seguimos o pensamento de Luigi Ferrajoli, no qual o sistema penal tem um de seus fundamentos em prevenir que o réu venha a sofrer por parte da vítima ou da sociedade uma reação informal, selvagem, espontânea, arbitrária, punitiva, porém não penal. Assim, “la pena no sirve sólo para prevenir los injustos delitos, sino tambiém los castigos injustos”, ou seja, temos a pena como algo para garantir os direitos do réu e o direito penal como um direito a amparar o lado mais fraco na relação que no processo é o acusado e na execução o apenado.

Destarte, não nos parece fácil aceitar o abolicionismo – tanto do sistema penal quanto das penas -, pois perderíamos o controle contra a vingança privada, conquistado duramente pela humanidade. Por outro lado, entendoemos que a privação da liberdade – de ir e vir – , enquanto última forma de pena e, desde que no mínimo necessária, seja uma forma de se garantir a sua própria integridade. Cabe aqui lembrar que retirar a liberdade, segundo um entendimento à luz de nosso tempo, de forma alguma poderia permitir que o condenado fosse transformado em um apátrida ou em alguém fora do tempo social, tal como ocorre nos presídios brasileiros.

8. Memória em um tempo relativo

O sistema penitenciário, tal como se encontra, nada mais é do que uma máquina de rememorização, visto que mantém o encarcerado preso ao passado, ao fato que lhe levou até o estado em que se encontra.

A memória do apenado mantém-se ligada ao passado, pois é ele que controla a sua vida no momento em que estiver enclausurado. Não há como desligar o passado: memória em um sistema que, por vezes, acha salutar a lembrança do fato, pois o autor do crime teria a necessidade do castigo para purificar sua alma do mal cometido.

O apenado tem o direito de libertar-se do passado, em respeito pela dignidade da pessoa humana, de seguir no tempo da sociedade, na velocidade e aceleração que essa se desloca. Somos todos, quem tenha cometido um delito ou não, filhos da flecha do tempo e do caos, e isso não nos é permitido dispor ao Estado.

A privação de liberdade, quando necessária, deveria obedecer o respeito ao ser humano, pois quem cometeu o fato delituoso não deixa de sê-lo por ter cometido o crime, sendo que esta pena, privativa da liberdade, deveria restringir-se ao ir e vir, de forma alguma interagir, dando direito ao apenado de reconquistar sua liberdade segundo critérios objetivos temporais.

Somente o contato com a sociedade e a tecnologia é que poderiam aumentar a possibilidade de trazer aquele que, se já não nasceu excluído, ao tempo da sociedade atual e sua exclusão e retenção no passado – pena de prisão nos moldes atuais - se mostra o inverso do discurso (re) que nos é vendido.

O tempo na prisão, na visão de quem é a vítima do sistema, se mostra lento, longo, improdutivo, dessocializante, despersonalizante e estigmatizante. O seu calendário é regressivo até atingir a sua liberdade. Porém, para que esse dia ocorra, as regras internas devem ser seguidas, ou seja, para sair segue-se as regras da administração do cárcere, para sobreviver segue-se as regras da galeria. Mas, ao sair, qual regra seguir? Qual tempo ter como base?

Aquele que jamais teve sua liberdade tolhida vê o tempo do preso passar na velocidade que sua vida passa e, portanto, nada mais lógico do que achar que as penas são muito brandas e que o seu endurecimento é algo necessário para o bom andamento da sociedade. Acreditam eles na falácia de que o tempo a tudo soluciona. Assim, excluir por um longo tempo - para que tenha tempo para pensar no mal que fez e para que os outros vejam o castigo que lhe espera caso cometam tal infração - venha a lhe intimidar.

Entre os extremos temos o egresso, já fora de seu tempo, despersonalizado, dessocializado e já percebendo seu eu como desviante.

Como se percebe o tempo na prisão deve ser visto sob vários ângulos para que não se caia em falsos argumentos, não esquecendo que a ciência do início do século XX já nos mostrou a relatividade do tempo.

BIBLIOGRAFIA

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3 comentários:

  1. Maravilhoso texto!!! Parabéns! Abraço, Luciana Trindade

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  2. Moretto, pare de transplatar o texto do teu livro para o blog! Uma época você não dormia, consumia ritalina e escrevia coisas diferentes!!! PS: tu que passou ao Podval a tese dos Nardone?????

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  3. Muito legal seu artigo viu!
    Alex Zenaide Psicologo
    Fortaleza Ceará

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